Vale da Serra, 9 de Fevereiro 22
“Olá a Tod@s.
Escrevo para partilhar a gratidão e o privilégio que foi
agora, e finalmente, conhecer-vos.
Aqui ao lado, nesta grande mesa de desenho que construí com
pedaços soltos de madeira está, em processo de criação, a “Harmonia da
Cooperação”. E é esta folha que irá absorver estas palavras que irão surgir
sabe-se lá de que fundo do poço, ou de que lado da consciênçia, apenas para
continuar a abrir janelas, para que continuemos juntos a colaborar e a
metamorfosear a vida e a arte, nesta sinergia que é inevitável e é bonita, e é
curativa.
Sou o João David, co-criador da Metamorfose Cósmica.
Há dias chegou-me o Rui aqui a casa, e entre abraços e
noticias do mundo exterior, na sua bagagem de poeta e sonhador, vinha o
catálogo da 100x100. Pude, enfim, por fim, conheçer-vos, pois por vicissitudes
várias e outros caminhos impostos e necessários, estive ausente e distante da
exposição, e não pude ver as vossas obras ao vivo. E assim recomeço hoje o
mesmo caminho-reverso de sempre... à lareira, por dentro das chamas dançantes,
com vontade de aqueçer o mundo, o nosso mundo.
Neste processo de harmonia e sincronicidade compreendi logo,
ao folhear a 100x100, que não estava sozinho. Também eu nalgum momento abri o I
Ching, e nas perguntas e respostas me encaminhei, lavei-me, levei-me,
transportei-me, segui o rumo inevitável da consciênçia quando consegue por
breves momentos atingir a sabedoria do coração. Agora sei, ao ler-vos e aos
sentir-vos, que a verdade flutuava de obra em obra, através da mão de cada um
de voçês, da mão, do coração, daquele “Power Within” que eleva as nossas
moléculas a um saber quântico e universal de que cada um de nós participa no outro
e nesta comunicação à distânçia, neste partilhar de pensamentos e sentimentos, recebemos
duns e doutros a força e o alento, e assim conquistamos o nosso espaço-tempo no
lugar sagrado da arte. A “Metamorfose Cósmica” foi para mim como um regressar à
terra, mas um regressar vertiginoso, uma queda Sísifiana cuja pedra que rebolava
desde o cume espezinhou todas as formas que tinha de comunicar com o mundo.
Todas? Eu ainda existia aqui, numa morada física, mosteiro de portas abertas, escrevendo
cartas à mão, resistindo... Em meia dúzia de meses apaguei da minha vida todas
as apps sociais, o número de telefone, o email; a internet saiu de casa e
fiquei só, só e concentrado, só com todos. Entrou “Númato-né”: A terra que me
dá de comer chamava-me, as árvores à minha volta dançavam, o vento assobiava
melodias de aconchego e o tumulto do mundo esbarrava nas paredes pintadas do
meu portão. Senti-me livre, demasiado livre... Compreendi dia-a-dia que estamos
todos no mesmo lugar-terra à mesma hora, sonhando, elevando a nossa consciênçia
a um despertar que se quer e se anseia. Eu não digo que assim esteja certo, mas
também não está errado, cada um vive nos extremos de que necessita, na sua
bolha social, todos diferentes todos iguais e assim partilhamos experiênçias
para sabermos que não estamos sozinhos. De alguma maneira inconsciente senti-me
verdadeiramente consciente. As janelas que se abriram deram-me um respirar
puro, um ar da serra deslizava pelas suas colinas trazendo o perfume da vegetação
às minhas narinas, pacificando-me. E foi neste momento que me re-criei, com as
vossas tintas e as vossas palavras, com os vossos sussurros, ecos ao longe que
faziam vibrar as minhas cores. E é disto que somos feitos, é esta a sabedoria
do Cosmos, da matriz universal que conecta as estrelas e nos encaminha. Eu
acredito.
A 100x100 foi isto. Foi um “Solcris” que iluminou um novo
mundo onde “Le Jeaus Sont Fait”. Precisamos ir em frente, e lavrar esta nossa
Terra lançando nela as novas sementes que amanhã o mundo colhe. Ver as coisas
verdadeiramente com novos olhos, novas cores, novos horizontes, abrir de vez
todas as jaulas para que voemos livres como tucanos. Vivemos mesmo num mundo
“Dead Pixel”, acorrentados a imagens que nos prendem, nos consomem, nos sugam e
que nos impedem de ver a folha de erva que cresce aos nossos pés. É preciso
Liberdade, muita, e só um chamamento Apache fará sair os vultos das suas
sombras e das suas águas profundas, para saltar as grades e vedações que nos
circundam e neste quebrar das muralhas fazer cair as fronteiras de “gaza” e
erguer um novo templo que é uma 100x100 de todos e para todos. Acredito nisto.
E a 100x100 fez-me meditar nisto: Sinceramente, não consigo
compreender isto da “Arte Contemporânea”. Cada vez que vejo um objecto destes
sinto a minha mente estagnada. Há um fantástico-belo, sim e um
incompreensível-feio. Vejo tudo misturado numa grande incrível e majestosa
ficção de sentires onde tudo é gigante, para que ninguém “deixe de ver”, onde
tudo é nome cara ideia instalação, justificando-se assim milhares que nunca
sobram para quem de coração cria. Onde tudo é também inifinitamente pequeno,
que parece não lá existir, mas existe, e custa milhões. E é nisto que estamos
na Arte, por um lado aliena por outro desperta, enaltece, entusiasma, engradece,
mas esvazia... quebra, mata, aniquila, corrompe, faz-nos querer ser outros que
não nós. E é quando consigo (às vezes) acordar dessa estagnação que vejo que o que
me vendem é um produto, uma Arte formatada por um desejo de capital e fama, sem
principios éticos e artísticos, criada apenas com a função de nos “distrair”.
Mas também sei que sou culpado de inepcia e falta de visão, ou de
conservadorismo artístico, culpado de querer as coisas à maneira antiga, suor,
lágrimas, luta, trabalho, amor, sonhos impossíveis... arte é arte... mas não
pode ser um livro fechado, ou uma banana, ou ferry boat, ou avião comercial. A
tinta tem e deve sair da ponta dos nossos dedos em ferida. Porque estamos todos
doentes, curamos-nos e curamos. E é nesta intuição curativa que nos devemos
entregar e fazer aquilo que fazemos, sem competição, bem-comum que é partilhado
e sentido, mensagem limpa e cristalina de que a única constante da vida é a
mudança e que amanhã não somos quem hoje fomos.
E é neste processo de entrega que me sinto subjugado a
interesses que ainda hoje me são completamente alheios e indiferentes. Mas como
consequênçia o “canal” de exposições se encontra quase-sempre bloqueado: ou por
falta de seguidores no Instagram, ou por falta de estudos académicos, ou por
falta de dinheiro, ou por falta de contactos, internet ou portfolios PDF, ou
por burcoracias municipais sem fim, ou porque “não se vende”, ou por falta
disto e daquilo e no fim as migalhas que sobram são, para a maior parte de nós,
o único alimento. Resta desenhar desenhar desenhar, pintar pintar pintar...
E é dizendo isto que enalteço a 100x100, que nos abriu
portas incomensuráveis. Mas não apenas a nós artistas... Ainda assim,
livres-pensadores, amassando o nosso pão. Como dizia Agostinho da Silva, “eles
safam-se”. Mas nem sempre...e não só. Porque não é só um arrancar os rabos do
sofá, ou um afastar das pupilas da dilatação dos cristais do “smart”phone, ou
de sensações meta-flexíveis. É uma cura, uma cirurgia mental sem anti bióticos
onde cada ser, acredito, se eleva e na inspiração trazida pela janela 100x100
qualquer coisa molecular remexe no fundo do tacho dos nosso problemas e vemos
as coisas da vida com uma outra tonalidade, uma cor efervescente que se
dissolve nas águas da esperança e que faz com que o observador seja outro-eu
dando continuidade aquilo que se esqueçeu de sonhar. Quando me dei conta que
era Artista dei-me conta por opção, entre tantas outras coisas que senti que podia
ser. Escolhi, obviamente, a mais “miserável” de todas... Miserável? Às vezes acontece-me
invejar os vagabundos, esses miseráveis de roupa suja e versos de alma lúcida
porque comer e beber tornou-se-me quase mecânico, porque o artista não come nem
bebe, transpira... cria, transforma, organiza, destrói. Inspira. E expira. E às
vezes até consegue verdadeiramente amar… A falta de alimento não é só falta de
farinha, nem de fermento, é, como dizia Miller na Carta Aberta aos
Surrealistas, uma fome espiritual... E é nisto que estamos. Encontramos-nos num
beco de poucas saídas, de boca tapada, com véus e burkas mentais, onde as
crianças pararam de brincar e de sorrir. Receber um abraço passou a ser um
risco de vida ou morte e o beijo inacessível... “essa peste escarlate e
virulenta...”. Os olhares cabisbaixos alimentam-se de asfalto. Os sonhos feitos
de metal-aço que enferruga às primeiras águas da chuva. E é aqui que todos entramos
de rompante, para organizar de novo o mundo e abrir janelas. Tornar-me Artista
foi uma imposição da Vida, foi uma revolta-rebeldia, uma libertação de todos os
medos, um apagar de todas as dúvidas impostas. Uma re-educação. Mas ainda hoje
me dizem: “vai trabalhar”. E lá vou eu todos os dias agarrar na enchada e cavar
a terra dos meus desenhos. Todos os dias... Porquê? Porque sei... sei que
aquilo que faço todos os dias também a ti te liberta, acredito que aquilo que
fazemos todos os dias sem perguntas, sem certezas, sem amanhãs, nos liberta a
todos. Acredito nisto.
Acredito numa 100x100 onde o ser Humano se encontra com uma
nova possibilidade, um novo entusiasmo, uma nova emoção, um novo sentimento,
uma velha e eterna esperança. Uma inspiração que já não encontra nas lojas e
nos centros comerciais. Digoisto com o meu espírito de criança ingénua, mas
sonhadora. Acredito que ninguém sai indiferente ao encontrar-se diante de uma
mensagem de liberdade, de efusão, de cor e de tinta. Somos palavra e é nesta
palavra que nos devemos entregar para que o livro se forme, sem competição, e
mais e mais de nós se libertem, se entreguem, se mostrem e se encontrem,
partilhando aqui e ali a sua voz.Pessoalmente, para bem e para mal, estou fora
do circuito da arte. Até há uns dias atrás conhecia pessoalmente poucos
artistas, mas conheçia as suas lutas que são também as minhas. Mas agora a Vida
proporcionou-me este reencontro, quase-vadio, feito de distânçias naturais, sem
artíficios tecnológicos, sob silençio interno, eterno. E percebi: foi preciso
uma 100x100 para rebuscar dez anos de estudos em papel e re-criar uma nova luz
solar; Uma 100x100 para nos dar Luzia, e ser ela, uma 100x100 para trazer ao de
cima memórias de indentidade, processos de individualização cósmica onde por fim
se entregou a alma ao papel, sedimentos de rocha que criaram novas camadas à nossa
fragilidade, dando-nos força, e tantos mistérios do mar por detrás de cada
janela, mistérios de mistérios, macro-micro-cosmos-nós que dão preserverança e
continuidade a uma criação que não pode estar parada, nem atormentada. Por
isso, meus queridos amigos, não parem de trabalhar, de criar, de se encontrarem
e de se perderem, de juntos abrirmos mais “kalimeros” na caixa de pandora da
nossa subjectividade. Os vossos trabalhos são maravilhosos e dão ao mundo
sedento maravilhas de beber, dão ao mundo o infinito universo do conheçimento,
de nós mesmos, pressionando para Sul o Norte, para Este o Oeste, o dentro fora,
um “Ultimum Canticum” com as nossas vozes em mutação, cantos de nós mesmos,
“integrando o ritmo pela forma com a diversidade”. Criem, amamentem-se sem
medos, preconceitos, dúvidas. É fundamental instalarmos-nos nesta continuidade
de criação e de exposição, atear as mentes, e apagar as guerras, porque a
100x100 re-criou-nos. A sua mutualidade e liberdade fez-nos artistas que não
eramos. Algo mudou... sinto isso em mim e em vós. Agora pensem em todos os
outros que estão para Ser... na arte que está para “florir”, na Primavera que depende
de nós... E é quase por isto que vos escrevo, pelas Primaveras porvir. Pelas 100x100
em que podemos dar (a)mar. Tudo isto me faz exprimir, ser. Porque eu não conheço
“esse” outro mundo da arte, nem as suas manhas, nem os seus jogos, nem os seus
interesses. Mas já tive a minha dose de frustações para perceber que esse mundo
não difere tanto do mundo operário em que trabalhei. É uma batalha: Vendi
desenhos na rua: a policia confiscou-me dezenas de vezes os meus trabalhos.
Vendi nas ruas, nas feiras, nos festivais, vendi, como W.W., porta a porta. Orgulhoso,
pedi comida nos restaurantes, aos vizinhos, aos amigos. E nunca me senti tão
feliz. Feliz porque era Eu, feliz porque era Livre, feliz porque o Tempo era o
cinto das calças que não usava. Era Inteiro porque dava ao mundo algo que não
existia. Entregava aos olhares algo que eles não sabiam como ver. E a fome e a
sede eram inspirações próprias, eram desenhos por fazer, eram tintas vertidas
por cima de pratos de arroz sem sal. Mas não tem que ser sempre assim, não tem
que continuar assim, não deve propagar-se para sempre assim… Varremos e
limpamos com esfregona paredes e chãos de casas infestadas de pó negro espiritual
que a labuta quotidiana e os maus salários impregnam; raspamos o bolor, o
salitre, as manchas de humidade; lavamos pratos sujos de gordura de
supermercado, fast-food ingerido por fast-movies, instantes à grama que apenas
dão ilusão e Ego. E é sabendo isto, interiorizando isto, que tão em paz, tãos cheios
de força e energia, somos todos tão pequenos Deuses - porque somos todos à nossa
maneira pequenos Deuses, não é verdade? Deuses que realmente sabem criar e fantasiar.
Deuses que sabem entregar-se, mostrar-se e que não se escondem por detrás das
nuvens ou debaixo do Sol ou nas profundezas do mar, ou nos Livros antigos.
Somos Deuses de alma física, dotados de poder e visão, de partilha, de mudança,
de Vida.
Então vamos a isso... É um apelo, se o quiserem aceitar como
tal. Um cantar a pleno pulmões. Porque assim acredito que tudo se tranforma.
Devemos lutar todos pelo nosso trabalho, colectivamente, e criar mais espaços,
mais diálogo e entregar-mos-nos intuitivamente à descoberta do outro, dos
outros, de todos aqueles que somos desconhecidos, e fazer com que a 100x100
perdure e que continue a rasgar o tecido negro em que a Arte se embrulha para
que a verdadeira Luz possa entrar e iluminar a vida. Porque só no colectivo o
individual existe. Não estamos sozinhos, somos eu-tu, individualmente colectivos,
e assim crescemos aprendemos compreendemos evoluimos.
Seja o que fôr... começou. A 100x100 Representa e É. Existe,
Existirá. Cabe a cada um de nós dar a parte da sua Mão, a cor da sua Tinta, o
espaço da sua Casa, o Lugar do seu Tempo, parte dos seus Recursos, metade das
suas Ideias, para que de facto possamos trazer a esta Vida de Todos esta Arte
para Todos. Seja o que fôr...
Um grande obrigado a esta “Canção da Borboleta”, ao Rui. A
esta magia simples, a esta conquista de um espaço meu-teu-todos, onde cada um
de nós pôde finalmente exprimir-se livremente e dar continuidade aquilo que lhe
é próprio sem as amarras e os nós gordianos desta estranha teia em que estamos
todos metidos. Reentremos então num novo verbo, almas velhas nas novas,
100x100´s pelo mundo fora e neste caminho descobrir caminhos, artes e
vidas e velas acesas”.
João David Araújo Zilhão