5 de março de 2018

Processo





  De um retábulo antigo, de um lugar sagrado em que o mundano se observa e se reflecte, de um alpendre esquecido pelo tempo retalhado no espaço e separado em peças e maquinações coloquiais, do centro de todas as partes de uma árvore-consciência, da energia que a eleva, das raízes que a seguram, da luz que envolve todas as suas folhas, penas-pavão, densidades mágicas, texturas e padrões, manifestações etéreas de uma ilusão concertada na realidade, na ausência de um ponto único, de uma primazia, na ausência de uma perspectiva única, de uma âncora inamovível, na ausência de um sentido prático ou visualização abstracta, mas presente em múltiplas construções contrastantes, de um ponto multi-dimensional, intensidade na partição do pensamento em caixas, em blocos, em escadas que remetem para o vazio e para a plenitude, para a luz ou para a noite absoluta, ou para coisas prosaicas, para o quotidiano que se esfuma a cada dia que passa, de um lugar qualquer, de um templo radicular, contemplação adiada nas coisas para fazer, contenção nos voos oníricos que sobrevoam as calçadas e as ruas, um desafio de infinitas fórmulas que se subtrai como se não fosse importante, esquecido nos remoínhos solventes da memória que se guarda das coisas, mas subliminalmente presente, um relógio que não pára, deixando impressões em tudo o que se expande, em tudo o que se contrai, em tudo o que está, em tudo o que vai estar, uma vibração que penetra no âmago de tudo o que é solvente e o recicla, em múltiplas dimensões e em nuvens que cruzam o céu, realidades retalhadas e espaços sagrados, árvores ao vento e retábulos antigos, presenças e visões, ausências e premonições, o tempo passa plos dias e deixa marcas na realidade que o próprio tempo se encarrega de enredar, criando as múltiplas realidades que o dispersam, que o propagam, que o dissolvem, que se expandem e que implodem, que revelam a essência, que revelam o essencial, o primordial, o inacabado, o sentido cósmico, de uma janela sobre a cidade observo a cidade, ausente dos meus próprios processos, e deixo-me mistificar, de uma clareira no bosque observo o bosque, e deixo-me enredar, prender-me nas múltiplas dimensões de um espaço retalhado que me observa, como eu o observo, o universo à minha volta.

Rui Lorga

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