5 de maio de 2009

O Ovo





Eu. Eu tive uma infância feliz. Recebi amor. E como todas as crianças da minha geração tinha 3 meses de férias. Julho, Agosto e Setembro. Este tempo de crescimento era passado entre praia e campo. Era metido numa “carreira” no Campo Grande que seguia para Bucelas onde fazia uma paragem e seguia até ao cruzamento da Perna de Pau numa aldeia perto de Sobral de Monte Agraço chamada São Domingos de Carmões. Esperava-me o sorriso contido da minha avó materna que depois de um beijo seco dizia: - Estás magro. A Dona Lucinda.
Além da Casa do Povo, de frente para o largo, a taberna da Lucinda era o único local de encontros e desencontros da pequena aldeia que era São Domingos. A minha base de brincadeiras e descobertas infantis. Vendia-se bem naquela altura. Vendia-se a nossa fruta, vinho, animais vivos ou mortos de criação. Vendia-se tabaco. Vendia-se uma televisão sempre ligada a tinto e branco para todos os que ainda não tinham uma e para quem precisava de um pretexto para sair de casa e fazer uma troca de impressões quase sempre sobre lavoura, alfaias agriculturais, cooperativas, bola e a vida do próximo que sempre me pareceu a de todos. Se não andava pelo campo de bicicleta, a fazer carrinhos de esferas, a nadar em poças de água de rega ou pendurado em tratores, auxiliava a servir copos de vinho, aguardente, licor caseiro, a vender mortalhas, onças de tabaco, Definitivos, guloseimas e melão a peso. E fazia trocos aprendendo na prática a tabuada. Enquanto isto era sempre gozado e sem cerimónias, por todos os que naquele lugar paravam. Alfacinha e “tenrinho”, era o alvo preferencial para a gargalhada geral e constante aprendizagem da retórica saloia. Era um puto, uma esponja que assimilava maravilhado a partilha do espaço de convívio dos homens grandes da aldeia. Ouvia crescendo e dormia todos os dias sozinho sem medo do escuro.
Uma noite de Verão, pelo inicio da década de 80, depois de jantarmos e com a taberna vazia, o eterno companheiro da minha avó, o Sr. Domingos, que para mim se tornou a referência de um avô sem o ser por sangue, disse-me ser possível equilibrar um ovo. Lembro-me que questionava sempre o que eu aprendia na escola e tinha como dado adquirido. Falávamos imenso até aos silêncios. E eu, estudante primário da cidade “a cheirar a leite” depois de doutrinado sobre Colombo respondi-lhe com ripanço que isso era impossível. Gozei-o. Para mim que só partindo a casca, parti-me a rir. Por seu lado, o Sr. Domigos sempre calmo e enorme, respondeu-me assertivo que não. Que com concentração e paciência o famoso Cristovão não teria tido a necessidade de fazer batota pois é possível. E disse-mo com um olhar que para sempre guardarei, porque me fez tomar a atitude de ir empreender a minha próxima experiência com um ovo. E para por de pé.
A técnica, explicou-me, era simples. Só tinha mesmo de querer. De acreditar que era possível visualizando. De seguida sentou-me num banco em frente ao balcão de mármore branco e gasto de cheiro a taberna. Forte. Uma base dura, plana e polida. Colocou-me o ovo na frente e disse-me para lhe tocar apenas com quatro dedos. Indicadores e polegares das mãos esquerda e direita. Disse-me para fixar o ovo à altura dos meus olhos e o sentisse respirando profundo e com calma. Fui o que fiz.
No inicio pareceu-me impossível que estivesse a fazer aquela figura numa taberna de porta aberta para gáudio de todos os que subiam ou desciam a rua. Mas já estava. Abstrai-me de tudo e todos fixando o meu ovo para o equilibrar. Desliguei-me, ligando-me. A um ovo. Abstracção concentrada consciente, imóvel com vagar e focado na célula, senti que existe um ponto de equilíbrio, vertical. A linha da força da gravidade comum a todos e que tudo atrai para o mesmo centro. Sente-se viva. O ovo dança à sua volta evitando-a com teimosia. As pontas dos dedos alternam o contacto e se vê uma força em torno da linha de equilíbrio. E eu senti-a apercebendo-me que era a colocação e distribuição do peso da matéria nesse ténue mas concreto ponto que tornaria o possível o esforço. Perdido no tempo do processo e sendo ignorado por imóvel teimosia... Chegou 0 momento. O alinhamento dá-se antes mesmo de soltar a casca. Sente-se.E na minha frente, na taberna da Lucinda, encontrava-se um ovo in tacto em perfeito equilíbrio.
Esbugalhado olhei para o Domingos apontando para que visse com os seus olhos vidrados "o milagre". Calmo e grande, levantou-se lento na minha direção e de mãos nas algibeiras permaneceu em silêncio sorrido. A minha avó sentada no cadeirão de madeira de almofadas de crochet ficou incrédula de orgulho contido. Não acreditava que era possível. Mas era. Foi. É!
Por três minutos o ovo manteve a sua posição. Manteve-se no seu ponto de equilíbrio central e rebolou sobre si mesmo porque sim.
Nesse dia senti o sabor da conquista, uma harmonia de que gosto. Uma elevação pela concretização do inesquecível.

No passado ano, voltei a São Domingos e enquanto pintava tive esta memória. Comentei-a e ninguém acreditou, tinham de ver para crer. E viram. Repeti o feito e viram um enorme ovo de avestruz em equilíbrio e sem que ninguém lhe toca-se.
Assim foi.


Luanda Sul, 1 de mai0 de 2009

6 comentários:

powlow disse...

Excelente e divertida história. Lembrou-me muito a sensação dos tempos inocentes pasados de puto...

Jakk disse...

muito bom!

Ana disse...

lindo:)

nunoccc disse...

Belíssimo texto. Excelente história. Esta tem que estar lá quando publicares as memórias.

Anónimo disse...

Tb gostei de ler ...mas gostei mais de ouvir...!Bem vindo
bjs
Sofia(Pedro/Piadas)

Anónimo disse...

LINDA HISTÓRIA MUITO OBRIGADA POR PARTILHA-LA

PEDRO FERNANDES