25 de abril de 2015

- PÃO -

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Lisboa, 10 de Abril. 1973

Querida Clara:
Bom dia. Desculpe-me não ter respondido mais cedo e desde já agradeço os seus votos de melhoras. Uma caminhada na praia e um mergulho de mar, evitaram a pharmacia.

Como me pediu, fui ter com o Rui «Devir» ao seu atelier. Liguei, combinado. Fui lá, porta aberta, de fácil trato e com uma delicadeza infantil deixou-me bastante à vontade passado tanto tempo de não o ver.
Clara, nada fazia prever que em 2005 quando começou a odisseia, se envolveria no universo de criação desta forma. Numa vontade de descoberta plena, o Rui falou-me da integração do conceito de devir na sua vida e trabalho. Andando às voltas pelo espaço, afirma conseguir moldar-se e utilizar diversas técnicas e linguagens de acordo com uma criatividade de comunicação tão necessária como comer. Um sonhador esfomeado.

Em primeira água, as várias experiências plásticas expostas, levaram-me a crer que estava num espaço de trabalho colectivo. Referi: - inconstante, indeciso e incoerente. Respondeu: - expansivo, nutritivo, consciente e sim, incoerente, como a realidade que nos é dada. Criados em diferentes momentos, os quadros respiram-no. Nenhum dia é igual ao outro e a agenda comprova-o. Aponta que lhe interessam estéticas em mutação que evoluem no sentir. Dinâmicas, no espaço e tempo interpretativo de quem coabita com as obras. Considera-as entidades em mutação. Por isso têm um nome derivado e integrado em processo e são transformadas até encontrarem quem delas tome cuide. A sua nova vida. Abrupta separação de momentos conectados a um fluxo. Apontei para trabalhos mais antigos e perguntei se sempre foi assim, ao que me respondeu que sim, sem o ter presente. Só experimentando, analisando o que faz, pulsando e vivendo processos de outros artistas o compreendeu. Confessou não sair muito porque nunca está sozinho e referiu que nada substitui a plasticidade e cristalização energética na matéria depositada num original. Por isto, diz amar museus, todo o tipo de intervenção e manifestação artística. Afirma gostar de tudo, que o foco da energia de criação manifestado em toda a arte e natureza é válido e passível de leitura. Compreendendo-o, anulou a palavra competição e prefere cooperação «porque tem dois ós».

Imagine; refere que somos gerações difíceis de esquecer; que numa perspectiva histórica, iremos integrar uma vivência que transitará do mecanicismo analógico para o digital microprocessado e que nessa tremenda transição, uma profunda e veloz alteração da percepção da realidade será imprimida. Os sistemas operativos, as relações, as emoções, o próprio conceito de humanidade será alterado e acredita que seremos exemplos bem estudados por futuras gerações. Disse-lhe que não compreendia do que falava, bebeu água e sussurrou: responsabilidade.
Neste discurso, Rui pareceu-me estar entre dois mundos. Fala sozinho e como uma criança, reclama baixinho que o amor é um elemento por descobrir e o veículo para outro estádio evolutivo. "Ainda agora começamos a andar. E caímos, estamos sempre a cair, em palavras que ecoam substituições faltas ausências e programações alheias que nos afastam". - Uns dos outros? Perguntei. - «Não, de nós mesmos e do todo.» Respondeu.
24 de Abril, afirma ser um bom dia porque coincidiu com os milhares de vezes com que o nosso artista reverberou com a palavra liberdade. Diz que nasceu em liberdade e que com ela seremos amamentados.

Como prometido, segue no verso o convite para PÃO - A exposição por Devir.
Mais uma coisa Clara. Convença a Teresa para que vá consigo. Soube que está muito grávida mas considero que lhe virá a ser útil ver o trabalho do Rui. Ela que leve a Constança pois gostava muito de as ver, saber como estão e o que andam a fazer. Espero-as bem, envies-lhe cumprimentos.

Sem mais, minha querida amiga, me despeço com elevada estima e amizade.


Sempre Sua,
Eufémia
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